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COVID-19 e doença do trabalho – Visões médica e jurídica

Com a inusitada ocorrência da Pandemia por Covid- 19, estamos vivendo um momento singular na história da humanidade. Em termos de Saúde Ocupacional, isto é muito preocupante, por ter sérias repercussões tanto em termos de consequência devido aos agravos à saúde dos trabalhadores, em termos de sequelas, como pelos desdobramentos judiciais que poderão ocorrer em face da caracterização ou não nexo causalidade entre o COVID-19 e o trabalho.

Assim, para nortear os Médicos do Trabalho, associados à APMT, convidamos três profissionais, com atuação na área de SST, para opinarem, tecnicamente, sobre essa questão.

A pergunta, abaixo formulada, é respondida por

Mário Bonciani – Médico do Trabalho

Daniele Pimentel Maciel – Perita da justiça do trabalho e Médica do Trabalho

Dr. Leonardo Wandelli – Juiz do Trabalho e Gestor Nacional do PTS/CSJT

Esperamos que nosso objetivo seja atendido.

PERGUNTA: A pandemia por COVID-19 suscitou debates acalorados com relação ao nexo causal com o trabalho. Nesse cenário de argumentações surgem questões como estarmos vivenciando uma pandemia disseminada globalmente que especificamente no Brasil não está controlada, qual o papel da responsabilidade do poder público e dos empregadores, como definir uma relação causal diante de tantas incertezas e como garantir a proteção à saúde do trabalhador. Como estão interpretando essas questões no âmbito das ações e decisões do seu exercício profissional?

RESPOSTAS:

Mário Bonciani – Primeiramente torna-se necessário considerar que, tendo em vista o caráter multicausal dos adoecimentos, a determinação de nexo por uma condição específica é muitas vezes difícil de ser comprovada com absoluta segurança. Duas ferramentas devem ser utilizadas para esta tarefa.  O exame clínico individual completo e as evidências epidemiológicas. Estas duas ferramentas devem ser utilizadas em qualquer situação em que se torna necessária avaliar uma condição causal específica (por conflitos trabalhista, securitária, previdenciária, entre outros). A avaliação epidemiológica é um instrumento da saúde pública que tem como um de seus fundamentos a busca da causalidade do processo de adoecimento de uma determinada população. A partir do conceito de risco, procura descobrir os determinantes na flutuação do processo saúde e doença, objetivando planejar intervenções públicas mais adequadas. Nesta perspectiva, a utilização de informações epidemiológicas é ferramenta indicativa necessária no mundo do trabalho para o conhecimento de causalidade entre as condições de trabalho e os agravos dos trabalhadores. Desde os primórdios da legislação acidentária brasileira este instrumental foi utilizado, seja pelo executivo ou judiciário, como ferramenta de determinação de nexo causal, entretanto, somente a partir da implantação da lógica de bônus/malus, com a criação do Nexo Técnico Epidemiológico (NTEP) e Fator Acidentário Previdenciário (FAP), foi formalmente reconhecida sua importância. A partir de extensivo levantamento estatístico, a legislação definiu explicitamente que para as patologias com maior incidência em determinados atividades econômicas o nexo será automático, cabendo ao empresário o ônus da prova em contrário. Adequando estas considerações à realidade da pandemia pelo COVID, é indiscutível, do ponto de vista técnico e legal, que os trabalhadores infectados pelo vírus e que trabalhem em empresas consideradas como atividades essenciais devam ser considerados, a princípio, como agravos decorrentes do trabalho (cabendo a empresa descaracterização do nexo). A elevada incidência de contaminação em trabalhadores nestes setores empresariais (hospitais, frigoríficos, entre vários outros) é de conhecimento público (além dos inúmeros trabalhos e artigos já publicados).

Daniele Maciel – Antes de iniciarmos a caracterização de nexo causal entre uma doença e o trabalho, é necessário constatar a existência do dano. Especificamente no caso da COVID, é preciso confirmar a ocorrência da doença. Aqui, já surge a primeira dificuldade na caracterização do nexo causal, uma vez que os testes diagnósticos não estiveram disponíveis para toda população e que o trabalhador não pode ser prejudicado pela ineficiência de políticas públicas. Mas o que fazer? Descrever os sintomas apresentados pelo periciado, sua evolução, dados epidemiológicos familiares e do meio social no qual esse trabalhador está inserido, incluindo o trabalho. O segundo passo é avaliar as condições de trabalho. Nesse momento, duas distinções precisam ser realizadas, o periciado esteve exposto a ambiente de trabalho com maior risco de infecção pela COVID ou o risco desse trabalhador se equivale ao risco populacional? Lembrar que essa maior exposição pode ser decorrente de questões inerentes à própria característica do trabalho, como trabalhadores da área de saúde; maior exposição epidemiológica ao vírus, como motoristas de ônibus coletivos; ou em decorrência do processo produtivo caracterizado por aglomeração de trabalhadores, como nos frigoríficos. Após essa distinção, é necessário avaliar os protocolos sanitários adotados pelas empregadoras. Aqui, não basta a apresentação de um documento padrão, mas é fundamental demonstrar sua aplicação (dados epidemiológicos dos casos, comprovação de adoção de medidas administrativas e de engenharia, entrega e treinamento dos EPIs, avaliação da eficácia das medidas e reformulação das medidas de controle, se necessário). Especificamente nos casos de trabalhadores expostos a maior risco ocupacional, será necessário aprofundar no detalhamento das características do trabalho do periciado, como: o atendimento a pacientes COVID ou não, as medidas administrativas como rodízios e escalas, trabalhadores administrativos ou de linha de frente. De uma maneira geral, na ausência da comprovação da adoção dos protocolos sanitários, o nexo causal não poderá ser excluído. Nesse sentido, a avaliação do nexo causal nos casos de COVID será principalmente de exclusão, cabendo às empregadoras comprovar a adoção de medidas eficazes de controle dos ambientes de trabalho.

Dr Leonardo Wandelli – Do ponto de vista jurídico é preciso perceber que há coincidências, mas também assimetrias entre a avaliação médica e a avaliação jurídica, quando se trata de discutir a responsabilidade pelo dano decorrente de uma doença que pode ser ou não relacionada ao trabalho. O primeiro aspecto é diferenciar nexo causal e culpa. Uma coisa é saber se uma doença pode ser atribuída ao trabalho como causa única ou uma causa relevante entre outras (concausa). Outra coisa é discutir se, uma vez identificada a causalidade laboral, ela pode ser associada a uma atuação culposa da empresa, de terceiro ou do próprio trabalhador. Não é adequado misturar as duas coisas. Sempre que há culpa do empregador há o nexo, mas não o contrário. No estabelecimento do nexo, mesmo a ciência médica defronta-se com muitas incertezas em casos de doenças como a Covid-19. Primeiro, o diagnóstico, que pode ser certo, mas normalmente depende de uma ponderação clínica, considerando sintomas, precedentes epidemiológicos e os fatores de risco, de modo que pode haver o diagnóstico sem exame laboratorial, o qual pode não estar disponível ou conter falsos resultados. Segundo, o prognóstico, pois ainda não se sabe bem o comportamento das sequelas. Terceiro e sobretudo a identificação do nexo (con)causal. No âmbito da assistência médica, penso que a conduta profissional deve ser no sentido da maior precaução, diante da inevitável incerteza, mesmo porque a investigação é sabidamente limitada. Assim, estabelecido o diagnóstico, com ou sem confirmação laboratorial, a existência de fatores de risco e/ou indicadores epidemiológicos relevantes, seja no local de trabalho, seja no deslocamento ao trabalho, deve levar a uma relativa presunção de que houve o nexo. Também a existência de falhas nas medidas de proteção já pode também autorizar essa presunção, salvo a demonstração de uma causa diversa. A dúvida deve ser decidida em favor da notificação como causa laboral, como medida de precaução. No ambiente pericial, especialmente judicial, esses elementos de incerteza devem ser explicitados ao juiz e ser justificadas as razões da maior plausibilidade de uma ou outra conclusão. Aí entrarão as regras jurídicas de decisão, pois se o médico pode manter a dúvida quanto ao diagnóstico e ao nexo para ir reavaliando, o juiz deve decidir de forma conclusiva. E para isso, há regras jurídicas de distribuição do ônus da prova, de presunções relativas e absolutas de juízos de probabilidade e critérios de responsabilização que não são da esfera do médico, embora dependam dos elementos de convicção trazidos por este.

Fonte: APMTSP